milinha leia todos os topicos sitados para que vc venha estar fazendo um bom trabalho beijos e um grande abraço.
RECURSOS NATURAIS: UTILIZAÇÃO, DEGRADAÇÃO E PROTEÇÃO PENAL DO AMBIENTE
Eladio Lecey
1. RECURSOS NATURAIS – noções gerais
A expressão recurso nos traz, de logo, idéia de uso, utilização, fruição. Recurso é algo que a pessoa pode usar, de que pode recorrer para a satisfação de uma necessidade. É, pois, um valor para a pessoa, um valor recorrível.
Muitas vezes esses recursos promanam da natureza. São os recursos naturais, definidos como “fontes de riqueza naturais utilizáveis pelo ser humano, tais como a água, o solo, as florestas, os campos, a vida animal, os minerais e a paisagem”(1).
Ditos valores apresentam-se como os elementos que, com as pessoas naturais, compõem o meio ambiente natural.
Meio ambiente, na definição legal, deve ser entendido como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas” (Lei de Política Nacional do Meio
Ambiente, Lei 6938/81, artigo 3º, inciso V).
Nesse meio vivem o homem e a mulher e dele podem retirar valores de que necessitam, os ditos recursos naturais. Em tal sentido confundem-se com os recursos ambientais, definidos na mesma Lei 6938/81, artigo 3º, inciso V como a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora.
2. RECURSOS NATURAIS E MEIO AMBIENTE
2.1. Utilização dos recursos ambientais. Reflexo no meio ambiente.
Recursos ambientais, hão de ser entendidos como valores naturais utilizáveis pelo homem, mas, como o ambiente é um valor de ser preservado, consoante determina a Constituição do Brasil (artigo 225), ecologicamente equilibrado, para as presentes e também às futuras gerações, não poderão ser exauridos, nem utilizados a ponto de comprometer sua preservação. Assim, podem ser definidos como recursos naturais utilizáveis na medida de sua sustentabilidade. É o que nos orientam os princípios elencados nos diversos incisos do artigo 2º da Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, dentre os quais a manutenção do equilíbrio ecológico, a racionalização do uso do solo, do subsolo, da água e do ar, o planejamento e a fiscalização do uso dos recursos ambientais.
Sabidamente, em se tratando de meio ambiente três concepções, no seu trato, se nos oferecem : a homocêntrica, a biocêntrica e a ecocêntrica. Mesmo numa visão homocêntrica (que, particularmente, não se nos afigura a mais indicada), divisando a pessoa humana e a satisfação de suas necessidades, não pode ser admissível, por disposição constitucional, a utilização indiscriminada dos recursos naturais que, como elementos do meio ambiente, devem ser preservados às futuras gerações.
Os recursos naturais podem ser classificados em renováveis, os que “tem assegurada sua manutenção ao longo do tempo, pela reprodução, no caso dos seres vivos, ou pela regeneração através de processos naturais” e em não renováveis, os “não vivos, não passíveis de reconstituição depois de consumidos”(2).
Como bem acentua Leonardo Boff, o ser humano se entende como um ser sobre as coisas, dispondo delas a seu bel-prazer, quando deveria se entender junto com as coisas, junto com a Natureza, como membro de uma comunidade maior, planetária e cósmica. De conseqüência, podemos ter, com essa distorcida visão, o triste efeito final, expresso na frase atribuída a Gandhi : “a terra é suficiente para todos, mas não para a voracidade dos consumistas” (3).
Surge, assim, a premente necessidade de uma concepção preservacionista, que se não alcançar, em nosso entender como seria de almejar, uma visão ecocêntrica, deve compreender o infinito ilusório dos recursos naturais, de modo que, mesmo na ética dominante, do utilitário antropocentrismo, ético seria “também potenciar a solidariedade generacional no sentido de respeitar o futuro daqueles que ainda não nasceram”. Embora pessoalmente concordamos que ético seria ainda, reconhecendo a autonomia relativa dos seres, admitir que eles também têm direito de continuar a existir e a co-existir com o homem e a mulher, “já que existiram antes de nós e por milhões de anos sem nós”(4).
De qualquer sorte, impõe-se, mesmo numa visão utilitária, a preservação dos recursos naturais e seu desenvolvimento.
2.2. Utilização dos recursos naturais, necessidade de preservação do meio ambiente e sua tutela penal.
Seja como um valor de per se, seja como o conjunto de recursos naturais valiosos e úteis ao homem, necessária se mostra a proteção jurídica do meio ambiente, o que refletiu na Constituição do Brasil, que o reconheceu como bem de extrema significação (de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida), a ponto de determinada sua defesa e preservação como dever de cada cidadão, da coletividade e do Poder Público, de modo a assegurá-lo, como recurso e como valor, não somente às presentes como às futuras gerações (artigo 225,”caput”).
A relevância social do ambiente é tamanha, a refletir no Direito, a ponto de expressada como relevância jurídico-penal, face a extrema danosidade de determinadas condutas, causadoras de perigo ou dano ao meio ambiente (e, de conseqüência aos recursos naturais), de modo que prevista a responsabilidade criminal tanto das pessoas naturais quanto das pessoas jurídicas por condutas e atividades a ele lesivas (Constituição Federal, artigo 225,§ 3º). Necessária, pois, a proteção do Direito Penal ao meio ambiente.
Recepcionando a norma constitucional, como sabemos, a Lei dos Crimes Contra o Meio Ambiente admitiu a responsabilidade penal da pessoa jurídica em matéria de ambiente (Lei 9605/98, artigo 3º) a par da concorrente responsabilização das pessoas naturais, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato.
A utilização dos recursos retirados do ambiente, por vezes, pode, pelo simples uso, atingí-lo a ponto de colocá-lo em perigo ou de danificá-lo, seja por retirar recursos não renováveis, seja por degradar recursos renováveis a ponto de comprometer sua sustentabilidade. Pode também o ambiente (e os recursos naturais) ser degradado por condutas outras que não o uso de recursos ambientais.
A utilização dos recursos naturais, a degradação do ambiente pelo uso de tais recursos, bem como a degradação do ambiente (e dos recursos naturais que o compõem) recebeu preocupação do Direito. Como sabemos, o Direito Penal tem seu âmbito de incidência bem mais restrito, estendendo sua proteção, na linha de sua mínima intervenção, como ultima ratio, a um leque de condutas bem mais restrito, de modo que nem todo o ilícito no âmbito cível se enquadra (sobrepondo-se) no restrito círculo da ilicitude penal, estando a nota da distinção na tipicidade penal que a reservou legalmente somente para as situações de maior relevância como já acentuado.
Neste trabalho, restrito aos recursos naturais e à legislação ambiental penal, abordaremos a proteção penal do ambiente (e dos recursos naturais) através da tipificação como crime: do (mero) uso dos recursos naturais, da degradação (do ambiente e dos recursos naturais) pelo uso de tais recursos e da degradação do ambiente (e dos recursos naturais) por outras condutas que não do uso direto.
3. UTILIZAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS E O DIREITO AMBIENTAL PENAL BRASILEIRO
O uso de recursos naturais por vezes, como já destacado, pode afetar o ambiente (e os próprios recursos como seus elementos que são) seja pelo perigo que da utilização de per se decorre, seja pela redução significativa dos recursos, ou ainda pela degradação que pode causar ao ambiente. Tais reflexos, também como apontado foi, pela relevância deles decorrentes, podem receber preocupação do Direito Penal, de modo a dar margem à tipificação como crimes de determinadas condutas consistentes na utilização de recursos naturais. Em sua grande maioria, ditas infrações penais encontram-se descritas na Lei dos Crimes Contra o Meio Ambiente, embora algumas continuam previstas noutras legislações criminais, como o Código Penal e o Código Florestal. Abordaremos algumas delas de acordo com os recursos ambientais utilizados.
3.1. SOLO. UTILIZAÇÃO DOS RECURSOS MINERAIS
A utilização dos recursos minerais, em decorrência dos atos de mineração na busca de tais recursos, desde a pesquisa, passando pela lavra e atingindo a extração e beneficiamento, abarcando também a garimpagem, produz expressivos impactos no meio ambiente. À extração, necessárias se fazem a pesquisa, na procura dos recursos, bem como a lavra no lugar onde encontráveis. Para tanto, poderão ser retiradas árvores ou vegetação acaso existentes no local, bem como ser escavado o solo para localização dos recursos minerais e sua extração.
Aponta Paulo Affonso Leme Machado como principais impactos produzidos pelas atividades de mineração: o desmatamento nas áreas pesquisadas, lavradas e donde extraídos os minérios, a alteração do padrão topográfico em decorrência da deposição de estéril e a alteração do padrão topográfico na abertura da cava(5).
Ditas condutas atingem, alterando-o, o solo que é um recurso ambiental. Podem, assim, causar degradação no recurso natural solo bem como podem atingir outros elementos como a flora e a fauna. Também os recursos hídricos podem ser atingidos danosamente. Exemplificativamente, a atividade de garimpagem no leito de um rio pode degradá-lo sensivelmente, a extração de um recurso mineral encravado no solo pode gerar alterações ofensivas, inclusive no lençol freático. De conseqüência, a simples atividade de mineração configura perigo ao meio ambiente e, em muitas oportunidades, poderá danificá-lo significativamente.
Em razão de suas potenciais conseqüências danosas foi que a Constituição Federal, em seu artigo 225, § 2º determinou a quem explora recurso mineral, a obrigação de recuperar o meio ambiente degradado. Ainda, o que bem reflete a sua potencialidade de poluição, exigida legalmente a prévia autorização do órgão ambiental para os trabalhos de pesquisa e lavra em áreas de conservação, autorização pelo órgão ambiental que as administre (artigo 17 da Lei 7805/89). Necessária, outrossim, a expressa autorização do Ministério das Minas e Energia à pesquisa mineral (artigo 15 do Código de Mineração, Decreto-lei 227/67). Também à garimpagem indispensável autorização, sob o regime de permissão, pelo Departamento Nacional da Produção Mineral (artigo 10, da Lei 7805/89).
Destaque-se que em muitas áreas vedada será a autorização, como nos parques nacionais, nas reservas biológicas, nas estações ecológicas, onde apenas poderá ser efetuada pesquisa científica que, como refere Paulo Affonso Leme Machado, não se confunde com a pesquisa mineral(6). Referidas áreas são três das categorias de unidades de proteção integral na sistemática da recente Lei que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Lei 9985, de 18 de julho de 2000). Dentre as unidades de uso sustentável, vedada está, expressamente, a exploração de recursos minerais nas reservas extrativistas pelo artigo 18, § 6º da mesma lei, enquanto nas reservas particulares do patrimônio natural somente admitida a pesquisa científica (artigo 21, § 2º, I).
3.1.1. CRIMINALIZAÇÃO DA UTILIZAÇÃO DE RECURSOS MINERAIS
Tendo em vista a proibição legal em determinadas áreas e a necessidade de prévia autorização para as atividades de mineração, o Direito Penal Ambiental, como instrumento de proteção do meio ambiente, refletindo, no entanto, a necessidade de um desenvolvimento sustentável, que, por vezes, passa pela utilização dos recursos minerais, também se ocupou da mineração. Admitido, com restrições, o uso de minerais, mas preocupado em garantir o equilíbrio ecológico na sustentabilidade do ambiente, que é um recurso até para as futuras gerações, protege, o Direito Criminal, o meio ambiente com medidas acauteladoras, visando a prevenção de danos, tipificando delitos de perigo. Assim, criminaliza o uso dos recursos minerais e até atividades tendentes ao uso, a ponto de prever como crime condutas visando dita utilização, punindo atividades de extração e, por vezes, até de pesquisa na busca dos minerais. Foi o que fez a Lei dos Crimes Contra o Meio Ambiente ao tipificar os delitos previstos nos artigos 55 e 44, o primeiro na seção da poluição e outros crimes ambientais, o segundo dentre os crimes contra a flora.
3.1.1.1. CRIME DE PESQUISA, LAVRA OU EXTRAÇÃO DE MINERAIS
Atividades, desde a pesquisa, tendentes ao uso de minerais estão criminalizadas pela Lei 9605, de 12 de fevereiro de 1998, ao assim dispor :
Art. 55 – Executar pesquisa, lavra ou extração de recursos minerais sem a competente autorização, permissão, concessão ou licença, ou em desacordo com a obtida :
Pena – detenção, de seis meses a um ano, e multa.
Análise do tipo :
No aspecto objetivo, ampliado o tipo pela nova lei. Anteriormente, conforme previsto no artigo 21, “caput”, da Lei 7802/89, somente constituía crime a extração de minerais. Agora, além da extração, também criminalizadas a pesquisa e a lavra de tais recursos. Em razão da potencialidade degradadora das atividades de mineração em geral, inclusive da própria pesquisa que demanda atos sobre o solo e sua cobertura vegetal, com possibilidade de danificar, bem andou a legislação no estender a tipificação.
Trata-se de crime de ação múltipla, já que várias as formas de condutas previstas para a realização de delito. E de conteúdo variável, bastando a prática de uma das condutas para haver o delito e, mesmo que praticadas mais de uma delas, continuará a existir único crime, o que, para alguns intérpretes, configuraria concurso aparente de normas resolvido pelo princípio da alternatividade. Na verdade, não existe concurso mesmo aparente, já que não há mais de uma norma com possibilidade de ser aplicada a única conduta, mas, sim, situação em que se trata de decidir sobre a aplicação, por mais de uma vez, de mesma lei sobre mais de uma conduta. Não há, assim, normas em conflito. Havendo mais de uma conduta, por exemplo, além da pesquisa, a lavra e extração dos minerais, ditas circunstâncias somente influenciarão na aplicação pena.
As condutas tipificadas são executar pesquisa, lavra ou extração de recursos minerais. Ditas atividades vem definidas pelo Código de Mineração, o Decreto-Lei 227, de 28.02.1967 : pesquisa é “a execução dos trabalhos necessários à definição da jazida, sua avaliação e a determinação da exeqüibilidade do seu aproveitamento econômico” (art.14), lavra é “o conjunto de operações coordenadas objetivando o aproveitamento industrial da jazida, desde a extração das substâncias minerais úteis que contiver, até o beneficiamento das mesmas”, extração vem a ser a ação de retirar os recursos minerais (no que também pode integrar a conduta lavra pela definição legal já citada), retirada que pode ser feita de qualquer modo, inclusive, através de instrumentos rudimentares na extração de minerais, como na garimpagem, faiscação e cata (definidos pelo artigo 7l, incisos I,II e III, do Código de Mineração.
Para que se evidencie o tipo, no entanto, outro elemento de ordem normativa é necessário: que ditas condutas sejam praticadas sem autorização, permissão, concessão ou licença, ou em desacordo com as obtidas. Destaque-se que somente poderão ser concedidas em áreas em que possível obtê-las, já que em determinadas unidades de conservação vedada estará a mineração, como apontado anteriormente.
Acaso possível e concedida a autorização, aquelas condutas de pesquisa, lavra ou extração, por óbvio, serão atípicas porque ausente elemento, embora normativo, integrante do tipo.
O crime em exame, é de mera conduta, bastando a prática de qualquer das ações descritas no tipo, sem ou em desacordo com a autorização (em sentido amplo) para a consumação do delito, não sendo necessário dano ao ambiente. Não é crime de resultado naturalístico e tão somente de resultado jurídico, qual seja, o perigo ao bem tutelado, que é o meio ambiente.
Trata-se de crime de perigo e de perigo abstrato, presumido naquelas atividades em razão da potencialidade de dano delas decorrente. O elemento subjetivo será o dolo tão somente.
Concurso com outros crimes: poluição (artigo 54 da Lei 9605/98), usurpação de recursos minerais (artigo 2ºda Lei 8176/91) e extração de minerais em florestas (artigo 44, da Lei 9605/98)
Importa examinar o conflito entre o delito do artigo 55 da Lei dos Crimes Contra o Meio Ambiente e os delitos do artigo 54 da mesma lei, qual seja, de poluição (que pode decorrer das atividades de mineração previstas no artigo 55), de usurpação pela produção de bens ou exploração (art.2º, da Lei 8176/91) dos recursos minerais que venham a ser extraídos através aquelas atividades tipificadas pelo artigo 55, bem como entre a extração prevista no referido dispositivo da Lei 9605/98 e a extração de minerais em florestas que constitui conduta tipificada no artigo 44 da mesma lei de proteção penal do ambiente.
Configuram ditos conflitos mero concurso aparente de normas que, como tal (aparente e não verdadeiro) se resolve pela aplicação de somente uma das normas, aquela que prevalecerá de acordo com os princípios da especialidade, da subsidiariedade ou da consunção?
Ou evidenciadas situações de autêntico concurso de normas, o que importa no reconhecimento de mais de um crime, seja pelo concurso material, seja pelo concurso formal de delitos? A meu juízo, a solução não é idêntica para todas as situações.
Havendo mais de uma conduta, mais de uma ação ou omissão e cada uma delas corresponder à descrição das condutas incriminadas em diferentes normas penais, haverá, por óbvio, concurso material de crimes. Todavia, se uma conduta constituir preparação, fase antecedente, por exemplo, ou não representar maior dano ao bem atingido pela primeira conduta ou configurar exaurimento da ação prevista noutra norma, haverá ante-fato ou pós-fato impuníveis, o que para alguns constituiria também concurso aparente de normas, mas que, de qualquer sorte, terá a mesma solução: somente se pune uma conduta, qual seja, a principal.
Quando houver única conduta ou um mesmo contexto de ação, a situação torna-se um tanto mais complicada e a nota de distinção entre os dois concursos de normas está em precisar se a conduta una ou em unidade contextual ofendeu, ou colocou em perigo, um ou mais bens jurídicos tutelados pelas normas em conflito. Acaso atingido ou ameaçado único bem ou interesse tutelado, haverá concurso aparente de normas porque a unidade não poderá configurar pluralidade de delitos, aplicando-se a norma preponderante segundo os princípios já elencados. Se ofendidos ou ameaçados mais de um bem ou interesse, tratar-se-á de concurso formal de crimes que implicará em concurso de normas.
Concurso com o delito do artigo 54 da Lei 9605/98.
Entendo aparente o conflito de normas no caso, embora respeitáveis opiniões em contrário que se inclinam pelo concurso formal de crimes(7).
Preliminarmente, interessa lembrar os conceitos legais de degradação, poluição e poluição penal. Os dois primeiros encontramos na Lei de Política Nacional do Meio Ambiente e o último na Lei dos Crimes Contra o Meio Ambiente.
Consoante o artigo 3º, da Lei 6938/81, degradação da qualidade ambiental, é a “alteração adversa das características do meio ambiente”(inciso II).
Poluição é “a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente: a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; c) afetem desfavoravelmente a biota; d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos” (inciso III).
Poluição penal é a “poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora” (artigo 54 da Lei 9605/98).
Assim, podemos dizer que toda poluição penal é poluição e é degradação, mas em níveis de danosidade tão expressiva a ponto de merecer a tutela, sempre mais restrita, do Direito Penal
Praticada atividade de mineração, através das condutas descritas no artigo 55 da Lei 9605/98, bastando qualquer delas como acentuado, configurado estará o delito em questão que é de perigo ao meio ambiente, já que com potencialidade (aquelas condutas) de causar degradação. O perigo, pois, é de degradação e de poluição, tanto que o artigo 55 vem inserido, na lei de proteção do meio ambiente na seção da poluição. Como afirmamos, para a configuração do tipo do artigo 55, não é necessária degradação já que basta o perigo presumido naquelas atividades.
E se o dano ocorrer? Haverá degradação e poderá haver poluição que, em sentido lato, nada mais é do que degradação, o que será considerado como conseqüência, na aplicação da pena, desde que não configure poluição em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora, o que já constituirá poluição penal. Aí, configurado estará o crime previsto no artigo 54 da mesma lei. Destaque-se que poluição sempre haverá quando se tratar do crime do artigo 54. Sempre haverá dano, pois, ao meio ambiente, embora às vezes em níveis que não cheguem a afetar significativamente a flora ou a fauna (mortandade de animais). Mas poluição, degradação é, sendo, em tal sentido, dano ao ambiente (obviamente, à configuração do tipo devem se somar à poluição outros elementos – conseqüências de perigo ou dano à saúde humana, ou de dano significativo à flora ou à fauna).
Assim, o crime do artigo 55 é de perigo, enquanto o do artigo 54 é de dano ao meio ambiente. Se resultarem de uma mesma atividade de mineração, haverá concurso aparente de normas, reconhecendo-se único delito, prevalecendo a norma do artigo 54 que tipifica o crime mais grave. Entre os crimes de perigo e de dano ao mesmo bem jurídico tutelado (no caso, o meio ambiente) prevalece o de dano pelo princípio da subsidiariedade tácita, já que há diferentes graus de violação do mesmo bem jurídico. No caso, o crime do artigo 55 e o do artigo 54 protegem, em distintos graus (perigo e dano, respectivamente) o mesmo bem tutelado. O fato de o delito do artigo 54 proteger ainda outro bem (mas nem sempre), qual seja, a saúde humana, não importa, porque a norma tutela, sempre, também o meio ambiente e neste aspecto é que se apresenta o conflito de normas e não quanto à saúde humana que não é diretamente protegida pelo artigo 55 da Lei 9605/98 e nem sempre é diretamente tutelada pelo artigo 54.
Concurso com o delito do artigo 2º , da Lei 8176/91
Segundo o artigo mencionado, “constitui crime contra o patrimônio, na modalidade de usurpação, produzir bens ou explorar matéria-prima pertencentes à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo”.
Ney de Barros Bello Filho entende ter sido dito dispositivo legal revogado pelo artigo 55 da Lei 9605/98, tratando-se, portanto, de conflito de leis no tempo. Sustenta que, mais abrangente a norma da lei ambiental que tutela não apenas o ambiente mas também o patrimônio da União, revogação teria ocorrido da lei anterior, enquanto Nicolao Dino de Castro e Costa Neto, posiciona-se pelo concurso formal de crimes(8).
Inclino-me pelo concurso de crimes, que poderá ser formal ou material, conforme decorram de uma ou de distintas ações. Cumpre observar que o delito tipificado no artigo 55 da Lei 9605/98, é crime contra o ambiente. Ao tipificar as condutas de pesquisa, lavra e extração de recursos minerais, como já foi destacado, em razão da potencial degradação, criminalizou-se o perigo ao ambiente. Não houve preocupação em também tutelar o patrimônio da União, tanto que somente descritas condutas visando a retirada dos recursos e não seu uso econômico também, ao contrário do que fez a Lei 8176/91 que previu a produção de bens e a própria exploração com sentido mais amplo que o de pesquisa. Não houve, portanto, revogação da dispositivo da última lei.
Os recursos minerais são bens da União, como prescreve a Constituição Federal (art. 20, inciso IX) e bens, por vezes, extremamente valiosos no aspecto patrimonial. O artigo 2º da Lei 8176/91 expressamente refere constituírem crime contra o patrimônio, na modalidade de usurpação, as condutas ali descritas.
Distintos, portanto, são os bens tutelados pelas duas normas incriminadoras, ou seja, o ambiente no artigo 55 da Lei 9605/98 e o patrimônio da União no artigo 2º da Lei 8176/91. Sendo distintos os bens ou interesses protegidos, acaso atingidos por mesma conduta, haverá concurso formal de crimes. Se decorrem de mais de uma conduta, material será o concurso. Não se trata, entendo, de concurso aparente de normas.
E, mais, especificou a Lei 8176/91 a produção de bens (a que, por óbvio, precede a atividade de mineração) bem como a exploração de matéria-prima pertencente à União. Os recursos minerais configuram tais substâncias. Embora o termo exploração tenha o sentido de pesquisar (e até de retirar) e aí se confundiria com conduta prevista no artigo 55 da lei ambiental penal, também tem sentido mais amplo, podendo configurar atividade de tirar proveito. No último sentido, já seria ato posterior às condutas de executar pesquisa, lavra ou extração de minerais. Por vezes, então, haveria mais de uma conduta na realização dos dois delitos. Assim, concurso de crimes existirá, formal ou material, conforme decorram os dois delitos de única ou distintas ações.
Concurso com o crime do artigo 44 da Lei 9605/98
Como dito dispositivo da Lei dos Crimes Contra o Meio Ambiente tipifica a conduta de extração de recursos minerais, coincide em parte com o previsto no artigo 55 da mesma lei. Todavia, restringe seu âmbito às florestas de domínio público ou de preservação permanente. De logo, salta aos olhos prevista única conduta em mais de uma norma mas com especificação. Repete, pois, o artigo 44, embora parcialmente, elemento configurador do tipo do artigo 55 com especificação no sentido de que a extração ocorre em floresta. Concurso aparente de normas, pois, resolvido pelo princípio da especialidade, preponderando, em tal situação o artigo 44, norma especial que é em relação à outra.
3.1.1.2. CRIME DE EXTRAÇÃO DE MINERAIS EM FLORESTA
Art. 44 – Extrair de florestas de domínio público ou consideradas de preservação permanente, sem prévia autorização, pedra areia, cal ou qualquer espécie de minerais:
Pena – detenção, de seis meses a um ano, e multa.
Análise do tipo:
Como recém observado, em razão do princípio da especialidade, a extração de mineral, se ocorrer em floresta de domínio público ou de preservação permanente, configurará o delito do artigo 44 que prevalece, como especial, ao tipo mais genérico do artigo 55.
Tipificada também atividade de mineração, restrita, no entanto, à extração, de modo que não prevista a pesquisa que será mera preparação do crime. O objeto material da conduta do sujeito ativo é qualquer espécie de minerais, sendo que a lei exemplificou pedra, areia e cal. Delimitado o local onde feita a extração, que há de ser onde se encontre floresta de domínio público ou de preservação permanente. Floresta de preservação permanente são as assim consideradas pelos artigos 2º e 3º do Código Florestal (Lei 4771/65), tratando-se neste aspecto, o artigo 44, em análise, de norma penal em branco.
No aspecto objetivo do tipo, outro elemento deve ser adicionado à ação de extrair mineral, qual seja, a ausência de prévia autorização da atividade. Elemento normativo do tipo, portanto. Autorizada a extração, não haverá tipicidade na conduta.
Subjetivamente, admissível apenas a forma dolosa, já que não prevista a culpa, sempre excepcional como determina o artigo 18, § único do Código Penal.
Na mesma linha de argumentação feita quanto ao crime do artigo 55, norma geral em relação ao artigo 44, concurso de crimes há com o delito de usurpação previsto no artigo 2º da Lei 8176/91, que tutela o patrimônio da União, enquanto o artigo 44 protege o meio ambiente.
3.1.2. CRIMINALIZAÇÃO DA DEGRADAÇÃO PELO USO DE RECURSOS MINERAIS
As atividades de mineração, previstas no “caput” do artigo 55 da Lei 9605/98, execução de pesquisa, lavra e extração de recursos minerais causam impacto no meio ambiente, degradando a área onde realizadas. Em razão disso, prevê a Constituição Federal, no artigo 225, § 2º, a obrigação, daquele que explorar tais recursos, de recuperar o meio ambiente degradado de acordo com a solução exigida pelo órgão público competente, na forma da lei. Não o fazendo, a simples omissão de recomposição constituirá delito.
3.1.2.1. CRIME DE OMISSÃO DE RECUPERAÇÃO DA ÁREA PESQUISADA OU EXPLORADA
Após tipificar as atividades de mineração, executadas sem autorização ou em desacordo com a concedida, lei penal de proteção do ambiente, criminalizou a ausência de recomposição da área degradada, prevendo:
Art. 55 –
Parágrafo único – Nas mesmas penas incorre quem deixa de recuperar a área pesquisada ou explorada, nos termos da autorização, permissão, licença, concessão ou determinação do órgão competente.
Trata-se de crime omissivo próprio que se consuma com o não cumprimento do dever legal de recompor o dano causado com a pesquisa, lavra ou extração dos recursos minerais. Sendo crime omissivo próprio, inadmissível tentativa, já que a consumação se dá com o não fazer. Ou o agente cumpre o dever, realizando a conduta de recuperação, ou deixa de fazê-lo e o crime já estará consumado.
A recomposição deve obedecer plano previamente apresentado e exigível pelo órgão ambiental quando da autorização, permissão, concessão ou licença da atividade de mineração. Também, por determinação ulterior poderá ser exigida a recomposição como estabelece a norma penal.
3.1.2.2. OUTROS CRIMES DE DEGRADAÇÃO PELA UTILIZAÇÃO DE RECURSOS MINERAIS
Outros delitos poderão ocorrer, acaso não recuperada a área pesquisada, ou explorada, com degradação expressiva, como, exemplificativamente, os crimes de poluição previsto no artigo 54, ou de dano em floresta de preservação permanente tipificado pelo artigo 38, em conflito aparente, respectivamente, com os artigos 55 (“caput” e parágrafo único) e 44 da Lei 9605/98, prevalencendo os delitos de dano mais graves, quais sejam, o artigo 54 e o 38 já que se produziram os danos de perigo ou dano menos significativo previstos nos artigos 55 e 44. Os artigos 54 e 38 serão examinados mais adiante.
3.2. UTILIZAÇÃO DO RECURSO AMBIENTAL FLORA
Como bem acentua Édis Milaré, “não é difícil pensar nas múltiplas utilidades da flora quando se busca a produção econômica sustentada: alimentos, forragens; óleos, fibras, resinas e assemelhados; elementos medicinais os mais diversos; indústria de móveis e da construção; combustível renovável (biomassa); celulose e papel… E há de se lembrar sua importância para a paisagem e o turismo, para o avanço científico e o desenvolvimento de tecnologias apropriadas”(9).
Indiscutível, de outro lado, a importância da flora como valor do e para o meio ambiente, indispensável bem da biodiversidade.
Como gênero de todas as espécies vegetais é significativo componente dos recursos ambientais. De se lembrar, embora não seja a única espécie significativa da flora, a importância das florestas e das árvores à biodiversidade no seguinte testemunho de um observador e fotógrafo da natureza:
“uma floresta não é apenas uma fantástica massa verde, mas que, nela, cada árvore cumpre, em si o papel de uma mãe-de-floresta. Em torno dela orbitam seres que evolutivamente se tornaram dependentes dessa contínua relação de troca. Onde viveriam bromélias e orquídeas sem os troncos e os galhos para se fixar? Aproveitando a água acumulada nessas plantas, uma pequena multidão de anfíbios, insetos e bactérias passa toda a existência sem conhecer o chão da floresta. E, nos cantinhos mais protegidos, as aves mais frágeis encontram um lugar seguro para o ninho. Em troca, na hora de se reproduzir, essa mãe-árvore precisa de alguns favores desses mesmos seres que dela dependem. Beija-flores, mariposas, morcegos e abelhas fazem a polinização das flores e tucanos, sanhaços e tiés, a dispersão das sementes. Uma árvore não sobrevive sem a silenciosa ação desses bichos todos e eles também dependem dela… Uma vez quebrado o equilíbrio dessa rede de trocas, nada mais poderá salvá-los. A floresta vai empobrecendo e a grande diversidade original desaparece. Uma vez desaparecida, não há biogenética que recrie uma floresta… Árvores isoladas e pequenos fragmentos de floresta são incapazes de sustentar a variedade de seres que levaram quatro e meio bilhões de anos para adquirir as formas espetaculares de hoje(10) .
Embora necessária, pois, a utilização do recurso natural flora há de ser feita com sustentatibilidade na busca de um equilíbrio ecológico. Algumas de suas espécies não poderão ser suprimidas ou utilizadas diretamente, salvo em caso de utilidade pública ou interesse social, como as localizadas em áreas de preservação permanente. Outras, poderão ser usadas mas com observância das normas de proteção.
Ainda, a utilização da flora poderá degradar o próprio recurso ambiental flora, bem como degradar o meio ambiente como um todo, já que todos os seus componentes interagem. O Direito Penal se ocupou do recurso flora e criminalizou determinadas condutas na busca de tutela do recurso e do meio ambiente como um todo. E o fez criminalizando, por vezes, o próprio uso do recurso.
3.2.1. CRIMINALIZAÇÃO DO USO DA FLORA
3.2.1.1. CRIME DE UTILIZAÇÃO DE FLORESTA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE
A Lei dos Crimes Contra o Meio Ambiente, em seu artigo 38 prevê como crime a conduta de utilizar floresta considerada de preservação permanente, mesmo que em formação, com infringência das normas de proteção.
Análise do tipo :
Floresta de preservação permanente, mesmo que em formação, é elemento normativo do tipo. Há que se distinguir flora de floresta, gênero de espécie. Flora deve ser entendida como “o reino vegetal, ou seja, o conjunto da vegetação de um país ou de uma região”(11). Toda vegetação, genericamente considerada, é flora. Floresta é espécie, qual seja, “a vegetação cerrada, constituída de árvores de grande porte, cobrindo grande extensão de terras”(12).
Destaque-se que, mesmo em formação, a floresta será objeto material do delito em exame. Logicamente que não será qualquer vegetação em formação, mas apenas aquela capaz de se transformar em floresta com as características apontadas (árvores de grande porte e em extensão de terras).
A floresta há de ser de preservação permanente, o que constitui elemento normativo do tipo, como destacado e a revelar ser o artigo 38 da Lei 9605/98 norma penal em branco, informado por normas do Código Florestal, quais sejam, os artigos 2º e 3º.
Por exemplo, as florestas situadas ao longo dos rios, ao redor das lagoas, lagos ou reservatórios d’água são de preservação permanente.
Utilizar é usar, tirar proveito, como, exemplificando, das árvores extrair frutos, da casca produtos medicinais.
Tendo em vista que a floresta é de preservação permanente, ou melhor, localizada em área de preservação permanente, o uso direto não é permitido, já que “as áreas de preservação permanente são partes intocáveis da propriedade, com rígidos limites de exploração… como sua própria denominação aponta, as APPs são áreas de preservação e não de conservação, não permitida a exploração econômica direta (madeireira, agricultura ou pecuária), mesmo que com manejo”(13).
Não pode haver supressão parcial ou total de florestas de preservação permanente, salvo casos de utilidade pública ou interesse social.
Agora, por força de alteração do artigo 4º, dentre outros, do Código Florestal pela medida provisória número 1956, “a supressão de vegetação em área de preservação permanente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública ou de interesse sócio-econômico, devidamente caracterizados e motivados em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto”(“caput”). Ainda, poderá ser autorizada “a supressão eventual e de baixo impacto ambiental, assim definido em regulamento, da vegetação em área de preservação permanente” (parágrafo 3º).
Destaque-se que a medida provisória referida está, atualmente (agosto de 2000), em sua versão de número 53, sendo reiteração de várias anteriores, na verdade pela fluência do prazo para conversão em lei (constitucionalidade discutível?) chegando-se ao absurdo de o Poder Executivo estar coordenando grupo de trabalho para regulamentação, pasme-se, da medida provisória.
Sendo vedados, o uso direto e a supressão, de per se, constituirão condutas incriminadas. O uso indireto também constituirá crime, assim como a supressão autorizada (naquelas excepcionais situações) desde que em desacordo com as normas de proteção, outro elemento normativo do tipo, de modo que necessárias se farão ditas normas para a verificação do tipo de ilícito.
3.2.1.2. CRIME DE USO DE MADEIRA DE LEI
Art. 45 – Cortar ou transformar em carvão madeira de lei, assim classificada por ato do Poder Público, para fins industriais, energéticos ou para qualquer outra exploração, econômica ou não, em desacordo com as determinações legais:
Pena – reclusão, de um a dois anos, e multa.
Trata a Lei 9605/98, no caso, de tipificar conduta consistente no uso de recurso da flora com fim específico, qual seja, transformação em carvão para uso industrial, energético ou em qualquer outra exploração da madeira assim transformada.
Carvão é “substância combustível, sólida, negra, resultante da combustão completa de materiais orgânicos”(14). Será mineral o carvão quando aparece na natureza resultando da decomposição de vegetais ou vegetal o carvão produzido artificialmente pela combustão incompleta de madeira.
É do carvão vegetal que a lei se ocupa. Como é decorrente da combustão de madeira, não se faz necessária madeira nobre para tal fim. Assim, utilizada madeira nobre há um grande desperdício de recurso ambiental decorrente da flora. Por isso, a criminalização da conduta que a utiliza com fim de transformação em carvão.
Análise do tipo :
A conduta criminalizada consiste no corte para transformar em carvão ou na transformação em carvão de madeira de lei. Exigido o fim de transformação em carvão, de modo que o corte, embora já constitua consumação do crime, deve ter aquela finalidade para se configurar o delito em questão. Trata-se, assim, de elemento subjetivo especial, sem o qual não se configura o tipo.
A madeira cortada ou utilizada para transformação em carvão deve ser madeira de lei, ou seja, madeira nobre, dura, com maior resistência de que são exemplos o mogno, o jacarandá, o carvalho e o ipê. A classificação deve decorrer de ato do Poder Público, no caso, a Portaria Normativa do IBDF 302, de 3.7.l984, Anexo I. Neste aspecto, é o artigo 45 norma penal em branco. Indispensável perícia para constatar a classificação da madeira nobre.
Finalmente, a utilização da madeira como carvão deve ser para fins industriais, energéticos ou qualquer outra exploração, o que evidencia outro elemento subjetivo especial do tipo e deve ser em desacordo com as determinações legais, mais um elemento normativo do delito.
Concurso com o crime do artigo 39 da Lei 9605/98
Conforme já destacado, basta o corte de madeira de lei com o fim de transformá-la em carvão e presentes os demais elementos normativos, para que se configure o crime de modo que o corte, que seria ato preparatório da transformação em carvão já constitui o delito. E se o corte for em árvore de madeira de lei localizada em área de preservação permanente, haverá concurso aparente com a norma do artigo 39 da Lei dos Crimes Contra o Meio Ambiente. Dita norma tipifica a conduta de cortar árvore em floresta de preservação permanente sem permissão da autoridade competente.
Qual dispositivo legal será o preponderante? Interessante a questão, já que cada conduta de corte tem seu elemento especial.
A do artigo 39 apresenta como especial o objeto material sobre o qual recai a conduta do agente, qual seja árvore em floresta de preservação permanente. A do artigo 45 expressa como especial, além do elemento madeira de lei, o fim específico já destacado. As penas privativas de liberdade cominadas, no mínimo, são iguais (um ano de detenção), enquanto no máximo a do artigo 39 é superior (três anos) à do artigo 45 (dois anos), embora no primeiro exista a alternatividade com a multa com opção à aplicação cumulativa que é determinada para o caso do artigo 45.
Penso que deverá prevalecer o artigo 39, tendo em vista o bem atingido, além de madeira nobre ainda em área de preservação permanente, sendo que o fim especialmente danoso (transformação em carvão) deverá ser considerado na aplicação da pena base, não sendo recomendável a aplicação da multa isoladamente como alternativa.
3.2.2. CRIMINALIZAÇÃO DA DEGRADAÇÃO PELO USO DE RECURSO DA FLORA
A utilização de recursos extraídos da flora (constituindo ou não de per se delito) poderá produzir dano em espécies da flora ou da fauna silvestre que sejam atingidos pelos atos de uso.
Já foi examinado o conflito aparente de normas entre o corte para uso de madeira de lei em floresta que esteja em área de preservação permanente. Este corte, em si, já constitui dano em floresta de preservação permanente tipificada pelo artigo 38 da Lei 9605/98. Neste caso, prevalecerá, pelo princípio da especialidade, a norma do artigo 39, que é especial também em relação ao delito de dano previsto no artigo 38.
O uso vedado de floresta em área de preservação permanente, mesmo não sendo de madeira de lei, já constitui o delito do “caput” do artigo 38 da Lei 9605/98 que também tipifica, além da utilização com infringência das normas de proteção, as condutas de destruir ou danificar. Se houver utilização e dano, haverá mais de uma conduta prevista na descrição do tipo. Neste caso, haverá crime único, já que o tipo é de ação múltipla e de conteúdo variável, importando a pluralidade somente para aplicação da pena.
Se para a utilização da flora, mesmo quando não vedado o uso, for executado o corte de árvores em floresta de preservação, embora o dano também ocorrente, prevalecerá o tipo do artigo 39 pelo princípio da especialidade como já discorrido.
Poderá ainda, da conduta de utilizar espécie da flora, decorrer dano a unidade de conservação. Por exemplo, penetrar em unidade de conservação e suprimir (o que constituirá dano à unidade) espécies da flora para uso , ou, para utilizar produtos da flora, penetrar em unidade de conservação com animais e indiretamente causar dano à unidade. Haverá, então, o crime tipificado no artigo 40 da Lei 9605/98.
Unidade de conservação, nos termos da Lei 9985, de 18 de Julho de 2000, são as de proteção integral (estações ecológicas, reservas biológicas, parques nacionais, monumentos naturais e refúgios de vida silvestre – artigo 8) e as de uso sustentável (áreas de proteção ambiental, áreas de relevante interesse ecológico, florestas nacionais, reservas extrativistas, reservas de fauna, reservas de desenvolvimento sustentável e reservas particulares do patrimônio natural – artigo 14). Ditas unidades de conservação estão explicitadas na nova redação ao 40 da Lei 9605/98 trazida pela mesma Lei 9985/00.
Finalmente, da utilização de recurso da flora, poderá decorrer dano à fauna silvestre, como a morte de animais que vivam junto às árvores ou vegetação que venham a ser suprimidas e, com elas, sejam os animais silvestres atingidos como efeito necessário sabido (dolo direto de segundo grau) ou efeito colateral previsto e aceito embora não necessário e por isso não querido diretamente (dolo eventual). Se o agente da conduta causar o dano à fauna dolosamente, haverá concurso de crimes, entre o delito contra a flora e o artigo 29 da Lei 9605/98.
O concurso será, de regra, formal se considerarmos único contexto de conduta. Se concurso formal perfeito, aplicar-se-á a pena do crime mais grave aumentada de um sexto à metade. Todavia, poderá ser imperfeito o concurso formal se houver dolo direto nos diversos resultados, aplicando-se cumulativamente as penas dos delitos contra a flora e a fauna (artigo 70 do Código Penal).
No entanto, se a morte de animais decorrer fora do dolo do agente, mesmo que previsível, tratar-se de culpa e, ausente a forma culposa, não há como se reconhecer concurso com o delito do artigo 29, devendo o dano à fauna silvestre ser considerado na aplicação da pena base, como circunstância judicial (conseqüência) desfavorável.
3.3. UTILIZAÇÃO DO RECURSO AMBIENTAL FAUNA
3.3.1. Fauna: caracterização como um bem ambiental. Fauna silvestre: bem de uso comum.
A fauna, ou mais amplamente, os animais em geral, até pouco tempo, sempre foram considerados, juridicamente, como bem patrimonial, tendo, nesse aspecto, o sentido amplo de coisa, o que até hoje predomina para efeito de interpretação de normas jurídicas como as penais (objeto material do crime de furto, por exemplo). Assim, a proteção do Direito se fazia sobre o bem jurídico patrimônio, individual ou coletivo, ou seja, bem da pessoa (individual ou coletiva). O Direito Penal tratava as infrações contra a fauna como crimes ou contravenções patrimoniais, ou seja, contra o patrimônio alheio. Era a fauna, unicamente, um bem patrimonial, algo para ter e um recurso e como tal, algo para usar, desfrutar, gozar. E a fauna silvestre, ou seja, os animais que vivem fora do cativeiro, eram tidos como coisas sem dono, conforme lembra Ney de Barros Bello Filho(15) e, portanto, coisas de todos e de cada um, de modo que podiam ser apanhadas e delas podia o homem usar indiscriminadamente.
Essa concepção hoje, felizmente, é tida como absurda.
A fauna, como recurso natural, é um elemento do ambiente, é um ser vivo que não pode ser tratado com crueldade e a fauna silvestre, um recurso ambiental de extrema valia à biodiversidade e à vida no Planeta Terra. Segundo a Lei da Fauna, Lei 5197, de 3 de janeiro de 1967, “os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais, são de propriedade do Estado, sendo proibido a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha” (artigo 1º).
A fauna silvestre, como elemento do ambiente, recurso natural que é, se revela como um bem de uso comum do povo. Integra o domínio da União, mas não o seu domínio privado. Demonstra Paulo Affonso Leme Machado que a Exposição de Motivos da Lei da Fauna ressalta que “fauna silvestre é mais que um bem do Estado: é um fator de bem-estar do homem na biosfera”. O que levou a União a tornar-se “proprietária” da fauna silvestre foram razões de proteção do equilíbrio ecológico, tanto que o domínio não se restringe aos animais mas abarca o seu habitat(16).
3.3.2. Espécies. Fauna doméstica. Fauna silvestre.
A fauna vem sendo conceituada como o conjunto de animais de determinada região. Pode ser dividida em doméstica ou silvestre.
A fauna silvestre recebeu proteção bem maior, justamente por constituir bem de uso comum e elemento indispensável do meio ambiente. Interessa, assim, a distinção entre as espécies de fauna que passa pelas definições de animais domésticos e silvestres.
A fauna doméstica é composta de “espécies que através de processos tradicionais de manejo tornaram-se domésticas, possuindo características biológicas e comportamentais em estreita dependência do homem”(17).
O melhor conceito de fauna silvestre, sem dúvida, é o legal, extraído da Lei da Fauna: é o conjunto de animais de quaisquer espécies que vivem naturalmente fora do cativeiro. Como acentua Paulo Affonso Leme Machado, a qualidade “silvestre” da fauna não quer dizer exclusivamente aquela encontrada na selva. É a fauna não domesticada, de modo que “mesmo que numa espécie já haja indivíduos domesticados, nem por isso os outros dessa espécie, que não o sejam, perderão o caráter de silvestre”(18).
3.3.3. CRIMINALIZAÇÃO DA UTILIZAÇÃO DA FAUNA
3.3.3.1 CRIME DE UTILIZAR, CAÇAR OU MATAR ESPÉCIME DA FAUNA SILVESTRE
Lei 9605/98, art. 29 – Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécime da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida.
Pena – detenção, de seis meses a um ano, e multa.
Criminalizada a conduta de utilizar animais da fauna silvestre para qualquer fim, como, exemplificando, apresentações públicas com objetivo de lucro ou até para a venda das espécimes.
Matar e caçar são outras condutas incriminadas, assim como perseguir e apanhar. Em geral, a perseguição pode ser para caça ou para apreensão e uso e até para matar o animal. Deste modo, o que seria preparação doutra conduta, já constitui, em si, a realização do tipo do artigo 29. Se houver mais de uma das condutas incriminadas, pelo mesmo sujeito ativo e sobre o mesmo objeto material, haverá crime único, eis que se trata de delito de ação múltipla e de conteúdo variável, bastando uma das condutas descritas para que ocorra o tipo e que, mesmo praticada mais de uma delas, continuará a existir crime único.
O animal perseguido, apanhado, caçado, morto ou utilizado há de pertencer à fauna silvestre. O conceito de fauna silvestre promana da própria lei, no caso, o artigo 1º da Lei da Fauna (vive naturalmente fora do cativeiro). Trata-se, assim, o artigo 29, de norma penal em branco, já que seu preceito, genericamente enunciado, vem a ser complementado por outra norma jurídica.
O parágrafo 3º do artigo 29 explicita as espécimes da fauna silvestre protegidas: todos os animais pertencentes às espécies nativas (naturais do Brasil), migratórias (não originárias do Brasil, mas que para aqui migram) e quaisquer outras (dentre elas as exóticas), que tenham pelo menos parte do seu ciclo de vida no país. Bastante abrangente, portanto, incluindo-se na proteção penal qualquer animal silvestre, natural ou não do Brasil, desde que tenha aqui pelo menos parte do seu ciclo de vida. Por exemplo, as aves, peixes e cetáceos que, provenientes doutros pontos do planeta, por aqui passam.
Tutelada tanto a fauna terrestre, quanto a aquática. Relativamente à fauna aquática, cumpre destacar que o disposto no artigo 29 da Lei 9605/98 não se aplica aos atos de pesca, como aponta o parágrafo 6º.
Também é incriminada a utilização, venda ou exposição a venda (além de ter em depósito, exportar, adquirir, guardar, ter em cativeiro, transportar ou ter em depósito) ovos ou larvas de espécimes da fauna silvestre, como tipifica o parágrafo 1º do artigo 29.
Para a perfeição do tipo, outro elemento de ordem normativa é exigido: que as condutas descritas sejam praticadas sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida (por exemplo, época indevida, em local não apropriado). A interpretação é de que dito elemento há de ser entendido como mera autorização de atividade(19).
Acaso concedida autorização, não haverá tipicidade, por ausente elemento de sua caracterização, desde que realizada a conduta de acordo com a autorização. A Lei da Fauna (5197/67), prevê a possibilidade de o Poder Público conceder autorização às condutas de utilização, perseguição, caça ou apanha (no Estado do Rio Grande do Sul vem sendo concedida dita permissão).
O elemento subjetivo do crime há de ser somente o dolo, já que não prevista, expressamente, a forma culposa que é excepcional como já destacado.
O sujeito ativo do delito poderá ser qualquer pessoa, inclusive o proprietário das terras onde praticadas as condutas descritas no tipo.
3.3.3.2. CRIME DE EXPLORAÇÃO DE CAMPOS NATURAIS DE INVERTEBRADOS AQUÁTICOS E ALGAS
O artigo 33, em seu parágrafo único, inciso II, da Lei 9605/98, tipifica como infração penal a conduta de quem explora campos naturais de invertebrados aquáticos e algas, sem licença, permissão ou autorização. Trata-se de criminalização do uso, protegendo a norma tanto a fauna (invertebrados) quanto a flora (algas) aquáticas, valioso ecossistema.
3.3.3.3. CRIME DE PESCA PROIBIDA
É possível o aproveitamento da fauna aquática através da pesca que, de regra, é permitida. O artigo 36 da Lei 9605/98 considera pesca “todo ato tendente a retirar, extrair, coletar, apanhar, apreender ou capturar espécimes dos grupos dos peixes, crustáceos, moluscos e vegetais hidróbios, suscetíveis ou não de aproveitamento econômico, ressalvadas as espécies ameaçadas de extinção, constantes nas listas oficiais de fauna e da flora”.
De logo, verifica-se vedada a pesca de espécies ameaçadas de extinção. Por isso, prevista como crime, pelo artigo 34, parágrafo único, inciso I, primeira parte, a pesca de espécies que devam ser preservadas (porque sob ameaça de extinção). Trata-se de norma penal em branco, complementada por norma administrativa que lista as espécies ameaçadas.
O mesmo artigo 34, em seu “caput” tipifica como crime a pesca em período em que proibida ou em lugares interditados pelo órgão competente, tratando-se, portanto, doutra norma penal em branco. A impropriedade de período ou local pode ser decorrente, justamente, da necessidade de preservar espécies ameaçadas. Exemplo, na época da desova, a não comprometer a reprodução das espécies.
Ainda, criminalizada a pesca em quantidades superiores às permitidas, ou mediante a utilização de aparelhos, petrechos, técnicas e métodos não permitidos (inciso II, artigo 34).
3.3.4. CRIMINALIZAÇÃO DA DEGRADAÇÃO DO AMBIENTE PELO USO DA FAUNA
O próprio uso, em si, já degrada o meio ambiente, eis que afeta sua qualidade, ao retirar-lhe elemento (recurso) natural. Assim, as condutas tipificadas nos artigos 29 (por exemplo, matar animal da fauna silvestre) e 34 (pescar espécie ameaçada de extinção ou em período de desova, ou em local onde comprometa a reprodução ou desenvolvimento) podem alterar o ambiente, degradando-o.
Por vezes, tais condutas são especialmente danosas, como o abate de animal pertencente a espécie rara ou considerada ameaçada de extinção, ou com métodos ou instrumentos capazes de provocar destruição em massa. Em tais situações, tendo em vista a reprovabilidade maior das condutas, a pena aplicada ao artigo 29 será aumentada da metade (parágrafo 4º, incisos, I e IV) e aumentada até o triplo se a caça for profissional (parágrafo 5º).
Prevê ainda a Lei dos Crimes Contra o Meio Ambiente, no artigo 35, o crime de pesca causadora de relevante degradação, que é aquela mediante a utilização de explosivos ou substâncias que, em contato com a água, produzam efeito semelhante (inciso I) bem como de substâncias tóxicas (inciso II). O último inciso inclui outro meio proibido pela autoridade competente. Todavia, há de ser também considerado tóxico, caso contrário tratar-se-á de crime menos grave, o previsto no artigo 34, III, como refere Ney de Barros Bello Filho20.
A propósito, poderá existir concurso aparente de normas entre os artigos 34 e 35, eis que ambas tipificam crimes de pesca proibida. Acaso executada pesca, por exemplo, em período proibido (artigo 34), e com emprego de meios parcialmente danosos, como explosivos ou substâncias tóxicas, o delito do artigo 35 será o preponderante, resolvendo-se o conflito pelo princípio da consunção.
Se da pesca com explosivos decorrer perigo à vida ou à integridade física ou ao patrimônio de outrem, terá ocorrido o crime de explosão tipificado pelo artigo 251 do Código Penal, em concurso formal com o crime de pesca do artigo 35 da Lei 9605/98, eis que bens distintos tutelados foram atingidos ou colocados em perigo.
3.3.5. EXCLUSÃO DA ILICITUDE
Finalmente, se o animal abatido for utilizado para saciar a fome do agente ou de sua família, estará afastada a ilicitude de sua conduta pelo estado de necessidade. O artigo 37, inciso I da Lei 9605/98 explicitou dita justificativa, diga-se, desnecessariamente, já que aplicável subsidiariamente o Código Penal que prevê a exclusão da antijuridicidade de qualquer conduta quando em estado de necessidade. Todavia, tal norma demonstra bem tratar a fauna como um recurso natural que somente poderá ser usado excepcionalmente, como na situação elencada. Como recurso ambiental que é, a fauna silvestre deve ser preservada, assim como os demais recursos naturais, no interesse da sustentabilidade de um ambiente ecologicamente equilibrado.
3.4. UTILIZAÇÃO DO RECURSO ÁGUA
3.4.1. Água como recurso ambiental
Reconhecidamente, a água é um bem valiosíssimo e sem ele não pode haver vida sobre a Terra. Bem valioso para a pessoa, individual ou coletivamente considerada, bastando lembrar a necessidade de ingestão de água, sua utilidade para gerar energia elétrica, industrialização ou agricultura(21).
A extrema valia do recurso natural água, não se restringe à sua utilidade para uso da pessoa, no entanto. A Lei de Política Nacional de Recursos Hídricos, Lei 9433/97, ao afirmar que a água é um bem de domínio público, expressa, com muito bem interpreta Paulo Affonso Leme Machado, sua característica, não de patrimônio privado da União, mas, como um recurso ambiental. Como elemento do meio ambiente, consoante artigo 225 da Constituição Federal, apresenta-se como bem de uso comum do povo. Assim, na lição do citado mestre, o Estado é gestor do bem água, no interesse de todos(22).
3.4.2. Limitação ao uso do recurso água
Há de ser preservado, dito elemento do ambiente e recurso, para as presentes e futuras gerações nos termos da norma constitucional. Dessa conceituação (como bem de uso comum do povo) e dessa característica (de elemento do meio ambiente), podemos salientar as seguintes consequências apontadas por Leme Machado : “o uso da água não pode ser apropriado por uma só pessoa física ou jurídica, com exclusão absoluta dos outros usuários em potencial; o uso da água não pode significar a poluição ou a agressão desse bem; o uso da água não pode esgotar o próprio bem utilizado e a concessão ou autorização (ou qualquer tipo de outorga) do uso da água deve ser motivada ou fundamentada pelo gestor público”(23).
3.4.3. CRIMINALIZAÇÃO DO USO DO RECURSO ÁGUA
Houve época, não muito distante, em que as pessoas tinham a concepção da água como um recurso natural infinito. Parecia algo que nunca se esgotaria. Hoje, embora exista quem ainda tenha aquela equivocada (e da parte de muitos, irresponsável) impressão de inesgotabilidade, não há dúvida da finitude do recurso e da sua cada vez mais expressiva raridade. Por isso já estamos esquecendo a conhecida expressão “barato como água”, justamente por seu valor como bem a se rarificar sensivelmente.
Sua relevância social deveria expressar-se na esfera jurídico-penal, de modo a estender o direito criminal sua proteção sobre esse recurso. A legislação penal, no entanto, pouco tem se ocupado das águas. A pesquisa sobre o tema é decepcionante(24).
Não obstante, as leis que, diretamente fazem a tutela penal do meio ambiente, como a Lei 9605/98, somente se ocupam das águas através da tipificação da atividade degradadora, pelo crime de poluição (artigo 54). Mesmo assim, a proteção é feita de forma reflexa, já que, no “caput” do artigo 54, para que se configure o crime, não basta a degradação ao elemento do ambiente (a poluição das águas de um rio por exemplo) exigindo o tipo a presença, quanto o ambiente, de degradação expressiva (destruição significativa) da flora ou da fauna (mortandade de animais). Assim, a proteção direta, quanto ao meio ambiente, será sobre a flora ou a fauna e só reflexamente ao elemento água. Ou, se decorrer perigo ou
dano à saúde humana, quando, então, a proteção mais expressiva é à pessoa e não ao ambiente.
Ainda, como está no parágrafo 2º, inciso III do mesmo artigo, se o crime (ou seja, a poluição penal prevista no “caput”) causar poluição hídrica que torne necessária a interrupção do abastecimento público de água de uma comunidade, a pena cominada será mais elevada e o delito qualificado. Neste aspecto, então, refletida uma maior preocupação com as águas, sempre como recurso.
Não é tão somente a poluição que representa ameaça significativa ao recurso ambiental água. Como bem refere Marcelo Malucelli, outras condutas podem atingir dito bem, como o represamento ou o desvio do fluxo normal da água em razão do lançamento de matérias não-poluentes, o aterramento de lagos e mangues e o desperdício em proporções gigantescas(25).
O caminho será, na sistemática atual e face à presente legislação, buscar-se a proteção das águas noutras leis criminais que, mesmo não o fazendo diretamente, podem ser instrumentalizadas para a tutela desse recurso. Para o futuro, inclinar-se o consenso social pela tipificação como crimes de condutas lesivas ao recurso ambiental água com relevância social a ponto de merecer a intervenção jurídico-penal, como algumas daquelas enunciadas (desperdício gigantesco e abusivo, quem sabe?)
3.4.4. CRIME DE USURPAÇÃO DE ÁGUAS
O Código Penal, no artigo 161, parágrafo 1º, inciso I, descreve como crime a conduta de quem “desvia ou represa, em proveito próprio ou de outrem, águas alheias”. A proteção penal aqui se dá, na velha concepção do recurso como bem privado e a tutela se estende, na verdade, ao interesse jurídico patrimônio, tanto que se localiza o dispositivo em questão, no Título II do Código Penal, que trata dos “Crimes contra o patrimônio”.
Referido artigo do Código Penal, no entanto, pode ser instrumentalizado para a proteção do meio ambiente, já que das condutas que constituem elementos objetivos do tipo podem decorrer danos ao ambiente. Por exemplo, o desvio das águas ou o seu represamento podem provocar danos à fauna ou à flora de forma significativa. Então, o juiz, ao aplicar a sanção criminal ao autor da infração, considerará a degradação do meio ambiente como conseqüência mais danosa, dentre as circunstâncias judiciais da pena-base.
A incidência do tipo, no entanto, somente se fará se houver usurpação, ou seja, se as águas forem alheias (do patrimônio individual ou coletivo de outrem, patrimônio particular privado ou público). Se as águas desviadas ou represadas forem “próprias”, no sentido de não alheias, não haverá tipicidade naquelas condutas, salvo se corresponderem a outros tipos que venham a tutelar o meio ambiente, como causar a morte de espécies da fauna silvestre (artigo 29 da Lei 9605/98, aqui incluídas, na interpretação preconizada anteriormente quando da análise do citado artigo 29, as espécies da fauna aquática) ou a danificação de florestas em área de preservação permanente (artigo 38 da mesma lei).
3.4.5. CRIMINALIZAÇÃO DA DEGRADAÇÃO DO RECURSO ÁGUA
3.4.5.1. PROTEÇÃO DA ÁGUA PELO DELITO DE POLUIÇÃO PENAL. ARTIGO 54 DA LEI 9605/98.
A tutela penal das águas, pela tipificação penal de sua degradação, como já foi salientado, pode ser feita, em caso concreto, através da aplicação do artigo 54 da Lei dos Crimes Contra o Meio Ambiente. Proteção, no entanto, de forma indireta e desde que da poluição ao recurso ambiental água, decorra dano ou perigo à saúde humana ou dano expressivo à flora ou à fauna. Foi apontado que, em tal caso, a proteção do meio ambiente, com relação ao elemento água, não é direta, dependendo, para o reconhecimento de sua tipicidade, que a conduta degradadora produza aqueles resultados (de perigo ou dano à pessoa, de dano expressivo à flora ou fauna). Ou, aí já mais acentuadamente com preocupação nos recursos hídricos, se da poluição do artigo 54, decorrer a interrupção do abastecimento público de água para uma comunidade, situação em que o crime será qualificado, com pena bem mais severa.
Revogação do artigo 271 do Código Penal
O artigo 54, “caput” da Lei dos Crimes Contra o Meio Ambiente, em nosso entender, revogou o artigo 271 do Código Penal. Segundo dito dispositivo legal, constituía crime “corromper ou poluir água potável, de uso comum ou particular, tornando-a imprópria para consumo ou nociva à saúde”. Da poluição de água potável sempre decorrerá, por óbvio, perigo de dano à saúde humana, pelo menos. Assim, haverá situação tipificada pela Lei 9605/98 que, por ser posterior, revogou o artigo do Código Penal, já que descritas as mesmas condutas, no Código Penal e na primeira parte do “caput” do artigo 54 da Lei 9605/98. As duas condutas apresentam sempre perigo à saúde humana.
Poder-se-ia concluir pela revogação parcial e que teria remanescido o tipo do artigo 271 do Código Penal quanto à conduta de corromper, no entendimento de que corrupção seria distinto de poluição, já que no último artigo inseridos os dois verbos. Na verdade, corrupção e poluição se confundem, sendo, ambas, degradação do meio ambiente. No conceito da Lei 6938/81 (art.3º,III) poluição é a degradação ambiental, dentre outras, a que prejudica a saúde da população, no que se enquadra a corrupção (ação de tornar podre, estragar, alterar, adulterar) no mesmo sentido de poluição (sujar, conspurcar), tornando prejudicial, no caso, à saúde.
Assim, em nosso entender, houve revogação integral do artigo 271 do Código Penal.
Da poluição penal nos ocuparemos adiante um pouco mais detidamente, quando abordaremos a degradação do ambiente em geral.
3.4.5.2. DELITO DE ENVENENAMENTO DE ÁGUA
O Código Penal, no artigo 270, primeira parte, descreve como crime, punindo com reclusão, de dez a quinze anos, “envenenar água potável, de uso comum ou particular”. Dita conduta, logicamente, é também degradar, poluir o recurso ambiental água.
Há quem entenda ter sido a primeira parte do mencionado artigo do Código Penal revogada pelo artigo 54 da Lei dos Crimes Contra o Meio Ambiente(26).
Envenenar, no entanto, não é apenas degradar ou poluir. É poluir a água, envenenando-a. É colocar veneno, ou seja, substância capaz de matar. Trata-se de conduta bem mais reprovável do que a de poluir com outra substância ou de outra forma. A lesividade é mais acentuada, já que o perigo de dano é bem mais expressivo e muito mais provável, tanto que a pena cominada é bastante severa, de dez a quinze anos de reclusão, enquanto a pena do artigo 54 da Lei 9605/98 é de um a quatro anos.
Trata-se de conduta mais específica. É envenenar e não apenas poluir. Deste modo, havendo envenenamento de água potável, haverá, por óbvio, também poluição do meio ambiente, mas com probabilidade de dano bem mais significativa. Assim, a poluição ficará absorvida pelo envenenamento. Aplica-se, de conseqüência, a norma do artigo 270, do Código Penal, que versa sobre crime mais grave e também abarca o conteúdo do injusto do artigo 54, em detrimento do dispositivo da Lei 9605/98 . Trata-se de concurso aparente de normas resolvido pelo princípio da especialidade porque a regra do Código Penal, no caso, é especial em relação à outra.
Concurso de crimes entre o envenenamento de água e outros delitos: homicídio, lesão corporal grave, danos à flora protegida penalmente e à fauna silvestre.
Se do crime de envenenamento de água decorrer dano à pessoa consistente em lesão corporal de natureza grave (artigo 129, parágrafos 1º e 2º do Código Penal) ou morte (artigo 121, do Código Penal) há que se distinguir: se o envenenamento for doloso (“caput” do artigo 270 do CP) e os resultados qualificadores decorrerem de culpa (artigo 19 do CP), tratando-se de preterdolo, portanto, as penas do artigo 270 serão aumentadas da metade em caso de lesão grave e aplicadas em dobro em caso de morte. Já se o delito de envenenamento tiver sido culposo (artigo 270, parágrafo 2º), o aumento da pena será de metade e, se decorrer morte, aplica-se a pena cominada ao homicídio culposo, aumentada de um terço (artigos 258 e 285 do Código Penal). Não haverá, pois, concurso de crimes, e, sim crime qualificado pelo resultado.
E se do envenenamento de água decorrer morte de animais ou degradação da flora? Nesse caso, de início, convém lembrar que haverá situação configuradora do crime de poluição penal (que também existirá se decorrer dano e apenas perigo à saúde humana) tipificado no artigo 54 da Lei 9605/98, delito que terá sua punição absorvida pela do crime de envenenamento pelo princípio da especialidade como já acentuado. Isso, no entanto, não quer dizer não ter havido o crime contra o ambiente e tão somente que seu conteúdo do injusto encontra-se no conteúdo mais amplo do tipo do artigo 270.
Se os animais mortos não forem da fauna silvestre ou se atingida flora não protegida penalmente (hipóteses que dificilmente ocorrerão, se é que tal poderá acontecer), continuará a existir o crime do artigo 270 do Código Penal, com absorção do artigo 54 da Lei 9605/98.
Se mortos animais da fauna silvestre ou danificada flora protegida penalmente, por exemplo, floresta em área de preservação permanente, há que se distinguir relativamente ao elemento subjetivo quanto ao envenenamento e às conseqüências à flora e à fauna. Se o envenenamento da água for culposo, ou mesmo doloso, e as conseqüências à flora e à fauna tiverem sido culposas, serão consideradas tão somente na aplicação da pena, como circunstâncias judiciais desfavoráveis orientadoras da fixação da pena base (artigo 59 do Código Penal).
Já se o envenenamento for doloso e os resultados morte de animais e dano à flora decorrerem de dolo, direto ou eventual, entendo que haverá concurso dos crimes do artigo 270 do Código Penal com os delitos tipificados na Lei dos Crimes Contra o Meio Ambiente, no caso, por exemplo, artigo 29 (que também protege a fauna aquática com exceção dos atos de pesca, conforme parágrafo 6º), concurso que será formal imperfeito quando o dolo for direto, já que resultantes de desígnios autônomos, cumulando-se as penas como determina o artigo 70 do Código Penal.
3.5. UTILIZAÇÃO DO RECURSO AR
Como acentua Édis Milaré, o ar atmosférico sempre foi tratado pelos civilistas como coisa natural fora do comércio, insuscetível de apropriação(27).
É, o ar, no entanto, um recurso natural extremamente valioso, sem o qual não poderá haver vida. Para constatarmos seu valor como bem indispensável à vida e como bem que pode ser extremamente caro, basta lembrar, como fez Marga Tessler(28), recente lamentável episódio, e constatar quanto deve ter custado a tentativa, infelizmente que se tornou ineficaz, de fazer chegar oxigênio aos marinheiros russos trancafiados no submarino nuclear Kursk, que naufragou no Mar de Barents, além, evidentemente, do dano muito mais expressivo decorrente das mortes dos 118 tripulantes.
A tutela penal desse recurso ambiental é feita em especial pela criminalização de sua degradação, através do crime de poluição penal tipificado pela Lei 9605/98 em seu artigo 54, delito que será examinado a seguir e protege todos os elementos do meio ambiente.
4. DEGRADAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS POR ATOS QUE NÃO DE USO
4.1. Conceito de degradação ambiental
Degradar é estragar, desgastar, deteriorar, alterar para pior. Degradar o ambiente, pois, é deteriorá-lo.
Degradação ambiental é o “processo resultante dos danos ao meio ambiente, pelos quais se perdem ou se reduzem algumas de suas propriedades, tais como a qualidade ou capacidade produtiva dos recursos ambientais”(29).
No conceito legal, trazido pela Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, degradação da qualidade ambiental é “a alteração adversa das características do meio ambiente”( Lei 6938/81, art.3º,II). Poluição ambiental, é também degradação , segundo o conceito legal.
4.2. Conceito de poluição ambiental
Segundo o inciso III do mesmo artigo da Lei 6938/81, poluição é “a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente: a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem estar da população; b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; c) afetem desfavoravelmente a biota; d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos”.
Diversas as formas de poluição do ambiente, bastando qualquer uma delas para que se configure, já que não são cumulativas. Assim, o lançamento de matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais é uma maneira de se apresentar dita degradação do ambiente. E se, não obstante em consonância com os padrões autorizados, ocorrer alguma das outras hipóteses de poluição? Segundo Paulo Affonso Leme Machado, estará igualmente configurada a poluição(30). Para Ney Bello existe uma presunção de que a conduta em conformidade com os padrões não é poluidora, presunção que pode vir a ser afastada em caso de prova contrária(31).
Entendo que, constituindo o lançamento em desacordo com as normas orientadoras apenas uma das hipóteses de degradação ambiental, poderá existir poluição mesmo havendo a conformidade. Para efeito de poluição cível, por óbvio. Já a nível penal, haverá de se apurar a contrariedade ao preceito contido na norma que tipifica a poluição penal (artigo 54 da Lei 9605/98) mas, como o preceito está na norma e não apenas na lei penal, não bastando a tipicidade meramente formal ou legal, poderá faltar tipicidade material ou tipicidade penal, já que uma norma não pode (parecer) punir uma conduta que outra norma tolera, impondo-se uma interpretação sistemática, já que o âmbito de incidência criminal é bem mais restrito do que o cível. A questão haverá de ser resolvida na esfera penal, já que poluição (na esfera cível) ocorreu.
Relativamente à poluição do ambiente, como bem aponta Benjamin, os conceitos de degradação da qualidade ambiental e de poluição confundem-se, valendo um pelo outro. Assim, poluir é tanto contaminar o ar, o solo e a água, como degradar a fauna e a flora, já que a Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, ao conceituar poluição o fez no plano da ética poliangular, adotando critérios estritamente homocêntricos (art.3º,III,a,b,d) e também biocêntrico (art.3º,III,c) já que poluição também será a degradação que afete desfavoravelmente a biota(32).
4.3. POLUIÇÃO PENAL
O conceito de poluição penal é mais restrito do que no âmbito cível, em razão da mínima intervenção do Direito Penal e de sua decorrente fragmentariedade. Somente pode constituir crime a conduta que estiver descrita em norma penal como um tipo, ou seja, conduta incriminada. A norma tipificadora da reserva legal, no caso, vem a ser o artigo 54 da Lei dos Crimes Contra o
Meio Ambiente que dá a nota da ilicitude penal à conduta degradadora ao meio ambiente. E o fez, a nosso ver, como apontaremos adiante, um tanto restritivamente ao contrário do que convinha a uma mais adequada proteção do meio ambiente.
Descreve o artigo 54,da Lei 9605/98:“Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora”. A pena a tal conduta será, além da multa, de um a quatro anos de reclusão, em caso de dolo e de seis meses a um ano de detenção, havendo culpa.
4.3.1. Análise do tipo
Constituem elementos objetivos do tipo causar, ou seja, apresentar nexo de causa e efeito, produzir, dar razão a poluição que se confunde com a poluição conceituada pela Lei de Política Nacional do Meio Ambiente em seu artigo 3º, inciso III já analisado em tal aspecto. Até aqui, então, o conceito de poluição ambiental constitui elemento do tipo do crime de poluição penal, pelo que podemos dizer que o artigo 54 da Lei 9605/98 é norma penal em branco complementada pelo citado artigo 3º, III da Lei 6938/81.
A poluição poderá ser de qualquer natureza como refere a lei penal, de modo que pouco importa seja do ar, do solo, da água.
Todavia, como a esfera penal é mais restrita, não basta a poluição em geral, já que deverá atingir níveis tais que tragam resultados naturalísticos constituindo perigo (possam resultar) ou danos à saúde humana. O perigo à pessoa haverá de ser constatado em concreto, em conformidade com os níveis de poluição. Nesse aspecto, tuteladas mais significativamente as pessoas, embora também o meio ambiente, já que da poluição, que é degradação, sempre resulta alteração adversa ao meio ambiente. Todavia, como já apontado, não basta dita alteração à configuração da infração criminal.
Outro elemento objetivo do tipo em exame vem a ser o resultado naturalístico de dano expressivo à flora e à fauna, eis que também poderá haver crime se da poluição ambiental decorrer a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora.
Neste aspecto, então, quanto ao meio ambiente, como bem tutelado pela norma penal, é mais restrita a área de incidência do tipo, eis que, se não existir dano significativo ao elemento ambiental flora ou fauna naqueles níveis, não haverá crime, a não ser, por óbvio, que da poluição ambiental resulte perigo ao menos à saúde humana, no que o bem tutelado já não será apenas o ambiente. Assim, degradação de outros recursos do ambiente não constituirá o crime de poluição se não houve perigo ou dano à pessoa ou dano expressivo à flora e fauna, naqueles níveis.
Ditos níveis vem a ser a mortandade de animais, ou seja, a morte de considerável quantidade de espécies da fauna. Se não atingir dita significação, poderá haver, isoladamente, outro crime contra a fauna., como a conduta tipificada no artigo 29 da Lei 9605/98 que, exige, todavia, o elemento subjetivo dolo.
Em se tratando do recurso ambiental flora, haverá de ser significativa sua destruição, o que deverá ser apurado tendo em vista o meio em que ocorreu o dano. Se não for tal a qualificação do dano, poderá haver, unicamente, outro crime contra a flora, como os previstos nos artigos 38, 40, 48, 49 ou 50.
No aspecto material do tipo deverá haver, ainda e por óbvio, nexo causal entre as condutas causadoras de poluição e os resultados naturalísticos à pessoa ou aos recursos ambientais flora e fauna. As condutas degradadoras poderão decorrer de ação (ou ações) sem sentido restrito (comissão, fazer, agir) ou de omissão, que será descumprir dever de agir para evitar o resultado nos termos do artigo 13, parágrafo 2º, do Código Penal, incluindo-se a nova concorrência por omissão do dirigente da pessoa jurídica trazida pelo artigo 2º, parte final da Lei 9605/98.
O elemento subjetivo do tipo será o dolo (“caput”) prevista também a culpa no parágrafo 1º do artigo 54. Quanto às formas qualificadas, previstas no parágrafo 2º, o elemento subjetivo será o preterdolo, ou seja, dolo na poluição e culpa no resultado qualificador, nos termos do artigo 19 do Código Penal.
4.3.2. Concurso com os delitos de lesão corporal grave e homicídio
Se do crime de poluição penal doloso decorrer lesão corporal grave ou morte, as penas serão majoradas de um terço a metade na primeira hipótese e até o dobro na segunda hipótese, conforme prevê o artigo 58, incisos II e III da Lei 9605/98. Para serem aplicadas ditas majorantes, no entanto, indispensável que os resultados tenham sido cometidos culposamente, ou seja, dolo na poluição e culpa na lesão grave ou no homicídio, segundo o já citado artigo 19.
Havendo dolo nos referidos resultados, será caso de concurso formal de crimes, de poluição com a lesão grave ou homicídio, sendo que o concurso formal será imperfeito ou perfeito, conforme haja ou não desígnios autônomos, como já apontado relativamente ao crime de envenamento de água.
4.3.3. Concurso com os crimes contra a fauna silvestre a flora
Da mesma sorte quanto aos resultados morte aos animais da fauna silvestre (inclusive aquática como salientado) e os danos à flora, se culposos o dano irreversível à flora e ao meio ambiente em geral (aqui incluída a fauna) decorrentes de poluição penal dolosa, será caso de aumento de pena, nos termos do artigo 58, I da Lei 9605/98. Todavia, se houver dolo na morte de espécies da fauna silvestre ou no dano à flora, será caso do concurso do delito do artigo 54 com os crimes contra a fauna e a flora protegida penalmente (por exemplo, floresta de preserva ção permanente), como os tipificados pelos artigos 29, 38, 40, 48, 49 ou 50 da Lei 9605/98.
4.3.4. Concurso com outros delitos assemelhados
4.3.4.1. Com o delito do artigo 33 da Lei 9605/98
Tipifica dito dispositivo legal a conduta de “provocar, pela emissão de efluentes ou carreamento de materiais, o perecimento de espécimes da fauna aquática existentes em rios, lagos, açudes, lagoas, baías ou águas jurisdicionais brasileiras”.
Haverá, com as condutas descritas, sempre poluição hídrica e a morte de espécies da fauna aquática. Trata-se, portanto, também de poluição penal, no caso, apenada menos severamente que o tipo do artigo 54 da Lei 9605/98. Se da poluição decorrente de tais condutas de emissão de efluentes ou carreamento de materiais, além da morte de peixes, houver perigo ou dano à saúde humana ou a mortandade de animais outros, será caso de aplicação do artigo 54 em detrimento do artigo 33 pelo princípio, segundo entendo, da subsidiariedade tácita. Acaso da poluição decorrente daquelas condutas ocorrer somente a morte de peixes, aplicável será a norma do artigo 33, autêntico “soldado de reserva”, somente instrumentalizada se não for caso da norma principal (artigo 54).
Penso que não poderá haver concurso formal de crimes, já que o artigo 54 tem como um de seus elementos também a mortandade de animais, no que fica incluída a fauna aquática, salvo quando esta última espécie for a única perecida em razão da conduta poluidora. Ou seja, reitere-se, desde que não haja dano à flora, à fauna silvestre (excepto peixes) ou que não se configure perigo ou dano à saúde humana é que será aplicado o artigo 33. Mesmos bens atingidos (no caso da fauna), portanto, decorrendo de conduta una, não poderá haver concurso de crimes e, sim, concurso aparente de normas, prevalecendo aí a principal.
4.3.4.2. Com o crime do artigo 270 do Código Penal.
O artigo 270 do Código Penal, já examinado anteriormente quando do recurso ambiental água, versa sobre o envenenamento de água potável, conduta mais específica do que a descrita no artigo 33, que tratade lançamento de efluentes e carreamento de materiais. Assim, prevalecerá o tipo do artigo 270 pelo princípio da especialidade.
4.3.4.3. Com delito do artigo 271 do Código Penal
Como já destacado quando da abordagem do recurso água, o artigo 54 da Lei 9605/98 revogou o mencionado artigo do Código Penal que também tipificava poluição, sendo que restrita à água.
4.4. CRIME DE PERIGO AO MEIO AMBIENTE EM DECORRÊNCIA DE POLUIÇÃO
O artigo 54 da Lei 9605/98, no tocante ao meio ambiente como bem/interesse tutelado, no “caput” e nos parágrafos primeiro e segundo, somente criminaliza a poluição se decorrer dano significativo à flora ou à fauna.
O parágrafo terceiro do mesmo artigo pune o perigo, ao prever que incide nas mesmas penas do crime de poluição penal qualificada (reclusão de um a cinco anos) “quem deixar de adotar, quando assim o exigir a autoridade competente, medidas de precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível”.
Não é crime de dano, portanto, bastando o risco. Sequer precisa ocorrer degradação, mesmo que em pequena escala. Assim, não se apresenta integrante do tipo o resultado poluição. Suficiente à caracterização do delito o risco de dano ambiental, grave ou irreversível, desde que decorrente de ato capaz de poluir, já que se trata de crime previsto em parágrafo do artigo 54 que versa sobre a poluição penal.
Criminalizado, pois, o risco, o perigo que há de ser, no entanto, grave e irreversível. Indispensável, outrossim, a omissão de medidas de precaução quando exigidas pela autoridade competente. Neste aspecto, trata-se de norma penal em branco, já que será complementada a norma penal incriminadora por norma a ser emanada da autoridade. Exigência que pode se dar de duas formas, segundo Vladimir e Gilberto Passos de Freitas: específica, diante do caso concreto, ou de ordem genérica para determinadas situações-tipo(33). Ditas medidas poderão ser, como aponta Leme Machado, a suspensão momentânea de atividades de uma fábrica, a mudança de itinerário na circulação veículos a motores, ou a restrição a essa circulação(34).
Nesse caso, ao tipificar a ausência de precaução e o perigo ao meio ambiente, mais protetora se apresenta a norma da nova lei se comparada com o crime de poluição penal previsto no artigo 15 da Lei de Política Nacional do Meio Ambiente. No entanto, restrita a criminalização à conduta omissiva (de precaução) e condicionada à exigência da autoridade. Noutros aspectos se nos afigurava mais tuteladora do ambiente a antiga lei penal.
4.5. COMPARATIVO ENTRE O CRIME DE POLUIÇÃO PENAL DA LEI 9605/98 E O DO ARTIGO 15 DA LEI 6938/81
O artigo 15 da Lei de Política Nacional do Meio Ambiente foi revogado pelo artigo 54 da Lei dos Crimes Contra o Meio Ambiente que deu nova definição ao crime de poluição penal. Na antiga descrição legal constituía crime de poluição a conduta do “poluidor que expuser a perigo a incolumidade humana, animal ou vegetal, ou estiver tornando mais grave situação de perigo existente”.
Num aspecto era mais expressiva a proteção penal ao meio ambiente do que na atual definição legal. Hoje, como já foi analisado, para se caracterizar o crime, quanto ao bem tutelado meio ambiente, há de haver dano significativo à flora ou à fauna. É, portanto crime de dano quanto ao ambiente. Na antiga lei bastava perigo à fauna ou flora. Se acaso ocorresse dano aos elementos fauna ou flora, desde que irreversível, havia aumento de pena até o dobro.
No tocante às penas cominadas, a lei antiga previa para o tipo básico (com perigo ao ambiente apenas) as sanções de um a três anos de reclusão, mas com aumento até o dobro (dois a seis anos) se decorresse dano irreversível à fauna, à flora e ao ambiente. Mais ampla também era a proteção neste aspecto, eis que dano (irreversível) ao ambiente em geral já era criminalizado, enquanto na nova lei restrito à flora e fauna.
A nova lei penaliza com um a quatro anos de reclusão (o máximo cominado é maior) mas restrito à ocorrência de dano significativo à flora e fauna, quando lá bastava o perigo, com duplicação das sanções acaso dano irreversível decorresse. Também nesse aspecto mais favorável era a lei antiga.
De positivo há que se apontar a explicitação de que a poluição pode ser de qualquer natureza, ou seja, de qualquer elemento do ambiente (o que, penso, poderia ser admitido em interpretação relativamente à redação antiga), bem como a tipificação da ausência de precaução no parágrafo terceiro.
Penso, no entanto, que, embora avanços tivessem ocorrido, recuo também houve ao deixar de ser tipificado o perigo ao ambiente, salvo na restrita hipótese já examinada do parágrafo terceiro. Assim, necessária se faz examinar sugestão de alteração legislativa a incluir no “caput” do artigo 54 da Lei 9605/98 o resultado perigo (que haverá de ser concreto) de grave dano ao meio ambiente em decorrência de poluição de qualquer natureza.
Essas as considerações sobre alguns aspectos da proteção penal do ambiente e a utilização e a degradação dos recursos naturais.